"Pois não será monstruoso? Este ator pôde, numa simples ficção, num sonho apenas de paixão, forçar a alma a sentir o que ele quer, a ponto de fugir-lhe a cor do rosto, marejarem-lhe os olhos, o conspecto confundir-se-lhe, a voz tornar-se trêmula, e toda a sua aparência se ajustar ao que ele pretende. "
Shakespeare disse (Hamlet, ato II, cena II) que a natureza do ator vai contra a natureza, que ela é horrível e ao mesmo tempo admirável. Ele o disse em uma só palavra: Monstrous.
O que é horrível, no ator, não é uma mentira, pois ele não mente.
Não é um engodo, pois ele não engana.
Não é uma hipocrisia, pois ele aplica sua monstruosa sinceridade em ser aquilo que ele não é, e não em exprimir o que ele não sente, mas em sentir o imaginário.
O que perturba o filósofo Hamlet, da mesma forma que suas outras aparições dos infernos, é, em um ser humano, o desvio das faculdades naturais para um uso fantástico.
[...]
A profissão do ator tende a desnaturá-lo. Ela é conseqüência de um instinto que leva o homem a desertar para viver sob as aparências. É portanto uma profissão que os homens desprezam. Consideram-na perigosa. Tacham-na de imoralidade, e condenam-na por seu mistério. Essa atitude farisaica, que não foi eliminada pelas mais extremas tolerâncias sociais, reflete uma ideia profunda. É que o ator faz uma coisa proibida: ele representa sua humanidade e brinca com ela. Seus sentidos e sua razão, seu corpo e sua alma imortal não lhe foram dados para que os utilize assim, como um instrumento, forçando-os e desviando-os em todos os sentidos.
Se o ator é um artista, ele é de todos os artistas o que em maior grau sacrifica sua pessoa ao ministério que exerce. Ele não pode dar nada se não se dá a si mesmo, não em efígie, mas de corpo e alma, e sem intermediário. Tanto sujeito quanto objeto, causa e fim, matéria e instrumento, sua criação é ele mesmo.
É aí que habita o mistério: que um ser humano possa pensar e tratar a si mesmo como matéria de sua arte, agir sobre si mesmo como sobre um instrumento ao qual ele deve identificar-se sem deixar de distinguir-se, agir e ser o que age ao mesmo tempo, homem natural e marionete...
... Há alguma coisa no ator que depende daquilo que ele é, que atesta sua autenticidade, que se nos impõe por sua maneira, sem fraude possível, e desde que ele surge em cena, antes que tenha aberto a boca, por sua simples presença. [...] É uma qualidade da natureza, que a arte pode servir para iluminar, mas que não poderia imitar...
Se o ator nem sempre sente o que representa, que ele representa o texto sem representar a personagem nem a situação, que ele consegue representar sem erro aparente, ou seja, mais ou menos justa e corretamente, mesmo que não seja tocado. É seu fracasso.
É a tendência que seguem os preguiçosos e os medíocres.
É o martírio a que os melhores expõem-se todos os dias, pois nenhum deles jamais sabe se não sentir-se-á subitamente devastado pela secura em um desses horríveis momentos em que ele se ouve falando, em que se vê representar, em que julga a si mesmo e, quanto mais se julga, mais se evade.
A ideia de uma sensibilidade que possui a si mesma, de uma espontaneidade que se busca, de uma sinceridade que se trabalha provoca facilmente o sorriso. Que não se sorria depressa demais. Que se reflita antes sobre a natureza de um ofício em que há tanta matéria a trabalhar. A luta do escultor com a argila que modela não é nada, se a comparamos com as resistências que opõem ao ator seu corpo, seu sangue, seus membros, sua boca e todos os seus órgãos.
Comments